Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

quarta-feira, 26 de março de 2014

Cotidiano

      A meu lado, na lan house, um estrangeiro no skype, dirigindo-se em espanhol a uma jovem de cabelos castanhos, que surge na tela do computador visivelmente estremunhada e cansada. Ele tem no máximo 30 anos e exibe um cabelão ondulado. Ela tem pele clara, puxada para o mate, e cabelos escuros presos para trás. Fala sem sorrir, de cabeça baixa (sorriu apenas uma vez), parecendo estar entediada. Deve ser puro cansaço, pois tem os olhos meio inchados (como os de alguém que acaba de acordar) e boceja terrivelmente. Imagino que fala do outro lado do mundo, em fuso horário às avessas do nosso. No mínimo deve ser madrugada por lá e ela deveria estar dormindo e não conversando com um amigo num lugar onde já é dia e basta virar a cabeça e ver pela janela um sol de rachar.
      Do meu lado esquerdo, uma outra jovem estrangeira mexe no seu Facebook. Imagino que o rapaz do Skype pode de repente voltar os olhos para a tela de meu computador (como aconteceu comigo) e descobrir que estou escrevendo sobre eles. Parece que estou sendo deseducada, espionando segredos,  mas o que houve é que, ao sentar-me, calhou de um olhar casual meu cair sobre a tela do computador dele. Vi então a figura da moça morena e chamou-me a atenção seu ar entediado. Quanto a ouvir o que ele diz, impossível deixar de fazê-lo. Ele usa fones de ouvido (por isso não sei o que ela diz) e fala em tom de voz normal, facilmente audível. Menciona um livro chamado Inferno, sobre as favelas do Rio (!), cujos direitos está tentando comprar. Mas achou o preço que lhe pediram no Brasil  alto demais, maior do que lhe cobrariam nos EUA.
      Imagino para quê alguém compraria os direitos de  um livro. Claro que para transformá-lo, ou num filme, ou numa peça de teatro. Mais provavelmente para um filme. Trata-se, com quase certeza, de um cineasta. Menciona uma sinfonia de Bach, não cheguei a captar qual. Uma música pela qual "se encantó".  Ela responde alguma coisa e ele, num tom de quem se justifica, menciona novamente a tal música de Bach, pedindo perdão (!) por tê-la mencionado, "eu não sabia que era assunto delicado". Soou como ironia. "Eu só mencionei uma música de Bach que me encantó", repete. E, de repente, encerra a sessão, sem se despedir. Tive a impressão de que foi a moça que desligou na cara dele. Não pareciam estar se entendendo mesmo.
     Estar aqui sentada, vendo o que acontece a meu lado, faz parte da vida em Paraty. Ah, separei uns livros (bons, por sinal) para doação à biblioteca local. Quanto a mim, aguardo que A. chegue da academia para irmos almoçar aqui no Centro.A lan house é nosso ponto de encontro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário