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"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

segunda-feira, 18 de março de 2013

Cafeeiros na padaria

      O rio Paraíba do Sul tinha cor de terra. Suas águas grossas e lentas, despejadas sob bambuzais, engoliam as hastes mais novas de bambus partidas sobre a  corrente. Na terra úmida da margem os colmos grossos cresciam altos, raiados de verde-e-amarelo. Era um quintal bom, grande, que descia até o rio. Uma cerca de bambu dividia o terreno em dois, fundindo-o em um só na minha memória. A parte mais doméstica do sítio, com a casa, o quintal de mangueiras e alguns abacateiros, ficava de um lado da cerca. Do outro lado, ficavam os troncos lisos, manchados de branco, às vezes negros de tanta fruta, de uma dezena de jabuticabeiras. Direto em aclive para o rio, um pequeno cafezal pintalgava bolinhas vermelhas. A memória esconde a existência de algum portão na cerca, mas o certo é que nós, crianças, pássavamos diariamente de um para o outro lado sem o menor problema, talvez por uma fresta aberta à força na fileira de bambus. Acredito mais na hipótese do portão.
      A construção era sólida, uma casa de paredes caiadas e telhas-vãs e cozinha nos fundos com chão de cimento, como se usava na época. A distribuição de cômodos em seu interior é um mistério sumido em minha memória: é como se eu nunca tivesse vivido lá. Só me lembro, na parte que dava para a rua, da porta de acesso a seu interior, do piso de tábuas corridas enceradas e, numa saleta na entrada, o estúdio de fotografia de meu pai. A máquina fotográfica era tipo lambe-lambe e, na parede, um cenário pintado: talvez um vaso sobre um aparador, talvez alguma palmeira, que servia de fundo às fotografias. Estou falando da casa onde moramos por três anos, em Santo Antônio de Pádua, no final da década de 40, a qual só fui rever 50 anos depois, em memorável viagem que me remete novamente a meu irmão R., da qual também participaram A. e Celinha, outra irmã.  
      Afinal, estes posts devem falar de Paraty, mas é que as paisagens daqui me remetem continuamente a esses sítios interioranos, com sua gente simples, riachos onde se molham os pés, frutas colhidas no pé, banhos de rio e muito verde. Só para citar um exemplo: outro dia, tomando café na padaria do bairro, entrevi um arbusto de folhas de um verde-escuro lustroso, crescendo colado a uma pequena árvore. Meio escondidas em meio à folhagem, frutinhas vermelho-escuro que só mesmo um olhar atento conseguiria descobrir. Comentei com A. que pensava ser um cafeeiro. E era, plantado pelo próprio dono da padaria. E isso que eu só vira cafeeiros ao vivo 50 anos atrás, ainda uma fedelha. Memória afetiva é isso. Só faltam mesmo as montanhas, um acréscimo que só Paraty tem.

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