Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

sábado, 9 de março de 2013

Escada

      Ele desceu a escada, chorando. Vestia uma simples camiseta branca e a bermuda comprada no comércio de Paraty. Do velho aparelho de som em cima do aparador, na sala, vinha baixinho o som de As quatro estações, de Vivaldi, minha preferida. Eu estava na cozinha, de costas para a sala e para o mundo real, descascando uma maçã. Sua voz me alcançou com uma urgência inesperada, que não condizia com a passividade do corpo jogado de bruços no sofá-cama do escritório, a mão esquerda sob a barriga, dia e noite, como costumava fazer ultimamente, o rosto sempre voltado para dentro do quarto, a porta da sacada fechada.
       - Não fale mais comigo daquele jeito, por favor! Você não precisa falar assim com as pessoas. Nunca, nunca mais fale assim comigo! É horrível, eu não aguento!    
       Eu tentara, minutos antes, convencê-lo da influência da mente sobre o corpo.
      - Eu estou morrendo, irmã. Estou cada vez pior.
       Era difícil ouvir aquilo. Não podia ser verdade.
      - Não está, R. Se você ficar dizendo essas coisas, aí mesmo é que vai ficar pior. Como sabe que está morrendo? Isso não é verdade. Você até pode não estar bem, mas não diga que está morrendo. Quanto mais você disser isso, pior vai ficar. As palavras têm poder!  
       Manter o bom-humor, o otimismo, sempre. Evitar baixas na imunidade, inevitáveis se você mantém pensamentos negativos. Quando jovem, eu absorvera essas ideias em livros de auto-ajuda, como O poder do subconsciente, de Joseph Murphy, o best-seller da época. Eu estava apenas tentando ajudá-lo, mas a mentalidade científica de meu irmão não se conformava com isso. Agora, descendo as escadas, em seus pouco mais de 60 anos, era apenas uma criança: de nada adiantavam promessas, ameaças ou palavras de consolo. Bem-apessoado, culto, viajado, R. naquele momento exibia um rosto contorcido por um choro escuro, quase agressivo em seu despudor. Não era possível, éramos uns estóicos, ele não podia estar chorando daquele jeito. Além do mais, não havia razão para isso.
     - Mas eu estou me sentindo cada vez pior! Não consigo caminhar, minhas pernas parece que estão travadas. Sinto falta de ar, esta dor não para, não aguento mais. E você ainda fala assim comigo?     
      - Assim, como?
      - Você falou alto comigo. Você gritou comigo. Não faça mais isso, pelo amor de Deus!
      Eu poderia tê-lo abraçado. Eu diria: "Irmão, calma, eu gosto de você, vamos conversar...". Nós choraríamos juntos. Em vez disso, fiquei sem reação. Ele estacou no primeiro degrau da escada, de repente. Parou de falar, deu meia-volta e subiu com a mesma rapidez com que havia descido. Minutos depois, intrigada com o silêncio, fui até o escritório: estava novamente deitado, de costas para a porta, a barriga para baixo, no escuro, só. 
      O que estou contando não tem nada a ver com Paraty? Talvez não. Não, não tenho o direito de perturbar publicamente pessoas que não conheço. Assuntos como esse não cabem em um diário virtual. Diferentemente do diário de caneta, tinta e papel, o diário virtual vive da exposição pública, e esta só suporta a beleza. Como toda adolescente da década de 50/60, mantive um diário secreto, descoberto uma tarde por minha mãe, que o retirou de debaixo do colchão, leu meus segredos, descobriu uma paixão reprimida pelo primo, soube que eu não era feliz. À guisa de consolo, canhestramente, garantiu que isso ia passar, mas que eu não podia me casar com um primo de jeito nenhum, os filhos nasceriam aleijados. Eu não queria casar com ele coisa nenhuma. Estava apenas amando. Como toda adolescente, eu amava o amor, a descoberta, não o primo.
      É, vou parar por aqui. Paraty é beleza! Vou escrever  à mão.
     

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