Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

sábado, 27 de julho de 2013

Caminhãozinho

     O caminhãozinho  finalmente se materializou defronte a nossa casa, no Condomínio Manacá. Diferentemente daquele do poema (post do dia 6/6/13), não era nítido e colorido sob a chuva, mas uma kombi descolorida, adaptada para caminhonete, com uma buzina esganiçada que nos surpreendeu às 9 da manhã, diante da porta da rua enlameada pela chuva recente. Estávamos na sala, tomando o café da manhã, crentes de que eles chegariam às 11 horas, conforme o combinado. No entanto, a seu bel-prazer, a empresa decidira comparecer às 9. Sim, havíamos trocado o horário anterior, de 9 horas, para as 11 horas, mas eles resolveram chegar às 9 mesmo, sem avisar. Quase engasguei com o pão.
      - É pra dar tempo de ir embalando as coisas, justificou com obviedade um grandão, apoiado em uma muleta e com a perna esquerda enfaixada, que parecia ser o chefe.
      - Mas ainda estamos tomando café. Como é que vai ser?
      - A gente espera, pode tomar o café, dona.
      É claro que começaram naquele mesmo momento. O grandão subiu com agilidade inesperada a escada para o segundo piso, enquanto os demais - uma jovem magra, espigada e meio inclinada para a frente, como um bambu à beira-rio, um magro com cara de poucos amigos e uma outra jovem de tipo indefinido - desembalavam os sacos plásticos pretos com capacidade para 100 quilos que, a seu pedido, havíamos adquirido. A maior parte das coisas da sala nós (quer dizer, eu ) já tínhamos guardado em sacos plásticos comuns que, como era de se esperar, foram jogados dentro dos tais sacos de 100 quilos. Enquanto eu imaginava para que tinham pedido os tais sacos, já que ninguém aguenta 100 quilos de peso nas costas, eles se encaminharam, para o andar de cima, onde ainda não havíamos embalado absolutamente nada. No térreo, eu havia pessoalmente embrulhado os 500 livros da estante e os apetrechos de cozinha. A., no entanto, deixara para o último minuto a embalagem de suas coisas do criado-mudo.
      De qualquer forma, não teria dado tempo para arrumar tudo antes de eles chegarem, de tal forma estávamos mais preocupados em ir para a rua bater pernas no Centro Histórico e almoçar fora. Faltava embalar tudo (inclusive os 300 livros que estavam no escritório). Lá em cima já reinava o terror: eles iam jogando tudo direto nos sacos de 100 quilos, sem contemplações. Era uma ação de destruição consentida, mas chocante mesmo assim. Em questão de minutos, malas desceram de armários, roupas se embolaram aos montes, colchões viraram de pernas para o ar e gavetas desabaram de criados-mudos. Não dava para acreditar que eles iam levar uma mesa para 6 pessoas, geladeira, máquina de lavar, cama de casal, fora os armários, naquela kombi. Mas foi. A kombi seguiu pela rua esburacada do condomínio, a 10 km por hora, arrastando-se nas patas, como um burro velho. Foram três viagens: na terceira eu também segui na boleia da caminhonete, porque não fazia sentido eu ir a pé pela lama (chovia, ainda por cima) para abrir a porta da casa do novo condomínio. E lá foi a kombi customizada, solavancando ee fazendo parecer que andava mais para cima e para baixo do que para a frente.
      Antigas mudanças de casa se materializaram naquele momento, impositivas para quem, como meu pai, sargento do Tiro de Guerra, era obrigado a mudar de cidade a cada par de anos, para assumir um novo posto, em outro quartel... em outra cidade, quem sabe em outro estado. Aliás, para quem não sabe, Tiro de Guerra era como se chamavam os pequenos quartéis das cidades do interior, na década de 50.
      Só já adulta vim a compreender o que significou, para todos nós, esse estilo de vida. Li em algum lugar que lembranças marcantes influenciam a vida que se seguiu. E as lembranças que ocultamos de nós mesmos? Não recordo absolutamente nada dessas mudanças. Eu não tenho a menor noção da forma como nos transplantavam - pai, mãe e crianças - de uma cidade para outra. Imagino que os móveis e tralhas teriam seguido em caminhão e a família de trem ou ônibus. Racionalizo, porque a verdadeira e emotiva lembrança desapareceu, ou nunca existiu. No entanto, opa! Puxo um fiapo. Havia os caixotes, grandes, com ripas de madeira bem pregadas, que eram usados na época em mudanças para lugares distantes. Forço a memória, para que essas lembranças voltem, para que eu possa me resgatar do limbo desse passado esquecido.
      Outro inacessível mistério é o que ocorria com os seres humanos que habitavam as antigas casas. Como viajávamos. Lembro-me de viagens de trem, mas não sei quando ocorreram. Os caixotes só podem ter seguido de caminhão. Se foi assim, quem sabe teríamos ido na boleia do caminhão? Deliro - mesmo sendo meu pai  um homem de poucas posses (apesar de sua importância no contexto social da cidade, como sargento do Tiro de Guerra, uma autoridade municipal, como o prefeito e o padre), sua economia era mais de sentimentos e menos de bens materiais. De qualquer forma, a coisa toda foi completamente apagada de minha memória. Lá foi "para Onde-Não-Sei/ lugar-nenhum, vida provisória/ levando aos trambolhões minha vida inteira/ num caminhão de sonhos transferidos". Continuo amanhã.    

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