Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Casa nova

     Se eu pensei que já sabia de tudo em matéria de mudanças, estava redondamente enganada. Aquele dia veio coroar, com seu caminhãozinho, um ciclo de mudanças históricas em minha vida. Foram feitas três viagens, número reduzido para o acúmulo de coisas que tínhamos. É que resolvemos deixar no apartamento, para o Beto (filho de um construtor das residências do nosso antigo condomínio, a quem muito estimamos), o guarda-roupa e dois armários de cozinha, que não tinham mais vez na nova casa. Isso diminuiu, em muito, o trabalho do quarteto encarregado do transporte. Numa dessas viagens (um simples atravessar de rua, ou melhor, de estrada, para o condomínio do outro lado da via), fui na boléia, oh! sacolejando como se estivesse sobre as ancas de um cavalo chucro, literalmente a 10 km por hora. Não sei se já disse que o caminhãozinho, uma kombi adaptada, era o único veículo capaz de transpor o portão estreito e baixo do condomínio.
      As miudezas (além dos livros, tudo aquilo que compõe o dia-a-dia de uma casa, como objetos de escritório e de uso pessoal) já tinham sido levadas por mim em sacolas e dispostas no escritório ou no quarto da nova casa. O restante foi nos tais sacos plásticos de 100 quilos, que foram deixados principalmente no térreo. Imagine-se dezenas de sacolas pretas atravancando a sala e a cozinha, impedindo a passagem e dando uma sensação  de desordem aviltante. De qualquer forma, encaro tudo numa boa. A., porém, deve ter um outro tipo de trauma de mudanças, que se manifesta por um retardo na ação. Como deixou tudo para a última hora, até hoje não conseguiu encontrar a comenda que recebeu da Câmara de..., deixada em cima da cama, com outros pertences, enquanto tomava o café. Acabou sendo embalada, só que pelo pessoal da mudança, que, naturalmente, deve ter jogado tudo para dentro de algum saco de 100 quilos.
      Quinze dias depois, somente hoje posso dizer que a casa começa a se parecer com uma casa. Claro que ainda há uma dezena de sacos plásticos, alguns debaixo da escada (ficou lindo o corrimão e o guarda-corpo da saleta logo acima, feitos pelo Carlos, nosso marceneiro de plantão), outros na cozinha e muitos, menores, no escritório, com todos os livros. Os criados-mudos de nosso quarto e a cômoda do escritório/quarto de hóspedes ainda estão de gavetas fora, mas na cozinha está tudo instalado e já fizemos nossas primeiras refeições na casa nova. Só não dá mesmo para pôr a leitura em dia - a não ser um ou outro jornal diário, não conseguimos tempo para voltar aos livros. Desde que começou essa história de mudança, larguei de lado A evolução de Deus, de Robert Wright, sobre a origem das religiões, que comecei a ler há um mês (geralmente termino um livro no máximo em uma semana).
      Alguns dias antes de nos mudarmos (foi um processo extremamente lento, que durou uns dois meses, já que estávamos aguardando ficarem prontos os dois armários do quarto, o corrimão e o guarda-corpo da saleta), já havíamos participado de nossa primeira reunião de condomínio, que terminou num pequeno churrasco e guloseimas. As pessoas são agradáveis e parece que também gostaram de nós. Eu já estava envergonhada, já que a todo instante as pessoas cobravam quando finalmente nos mudaríamos. Era um tal de ir e vir entre um condomínio e outro, com bons-dias e boas-tardes a todo instante, que eu já começava a me sentir uma invasora da privacidade alheia. Um dia, vendo uma moradora  sentada em um estiloso banco à frente de casa, eu disse, à guisa de explicação, com um sorriso:
       - Acho que agora sai!
      A resposta (a princípio não entendi, mas ela repetiu): - Essas coisas parece que se eternizam, não é?
   
   

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