Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Memória

      Se me dispus a descrever uma mudança, devo fazê-lo, mesmo que isso não interesse a ninguém - talvez nem mesmo a mim. Os livros estão entre os primeiros itens a serem transportados, pacote a pacote, para nova casa. Vão embalados em plástico e deixados cuidadosamente no que será o quarto de hóspedes e escritório, no segundo piso. Mais para a frente, irão para uma linda estante de marcenaria, na parede de frente para a janela. Essa janela abre-se para o pequeno quintal, dominado pela presença de uma caixa d'água metálica redondona, tingida de zarcão, pousada como um disco-voador num ângulo de muro. As janelas do quarto que dá para os fundos abrem-se para as laterais do prédio da Defesa Civil do município, que ocupam boa parte ao longo do muro do condomínio. Isso significa que, se a Serra da Bocaina desabar, temos alguém logo ali perto para nos socorrer.
     Em minha vida, as mudanças, embora na época eu não me desse conta disso, foram sempre traumáticas. Filha de militar, submetida em casa a um regime de caserna (em São Fidélis morávamos, literalmente, dentro do quartel), tinha um pai rígido, adepto das correiadas como forma de educação, coisa da época. Encolhida no ângulo do muro do quintal, sentindo arder nas costas a ponta do cinto de couro, arrancado da cintura num gesto largo de déspota, eu me encolhia em silêncio. O grito engolido às pressas se recolhia num soluço. Sabia ser aquela a única comunicação possível com aquele ser de poucas palavras, cuja farda eu costumava admirar em dias de festa cívica, lendo discursos na praça, ao lado do prefeito, para o povo assistir.
      Eu intuía que esta mudança me levaria a isto, a esta memorialística fora de hora... e que acabariam surgindo os personagens de uma família amarrada a si mesma, como um mágico que tivesse se esquecido de como reverter sua magia. Assim como em meu outro blog, Anel de pedra verde, apenas uma vez escapou-me entre os dedos uma palavra sobre R., meu irmão, neste escapa-se agora uma ponta de passado, muito mais remoto, que não interessa a ninguém. Afinal, o que pretendo com este blog? Ele corre paralelo ao Anel de pedra verde, tendo como pano de fundo minha mudança para Paraty. Creio, porém, que chega de memorialística. Não sou nenhum Pedro Nava nem vou escrever nada parecido com O galo das trevas, Baú de ossos ou coisa parecida. Só quero registrar uma mudança.

Nenhum comentário:

Postar um comentário