Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Gulliver em Liliput

      Do táxi, vejo o mar. Chegando a Niterói no sábado, pedi ao taxista para "ir pela praia". Quando voltamos a um lugar após prolongada ausência (estou falando de anos, não meses), percebemos uma mudança, que tanto pode ser interior (mudamos nós, a cidade continua a mesma) ou exterior (a cidade mudou, fisicamente: novos prédios, ruas ou viadutos). Passados apenas dois ou três anos, é mais provável que a mudança tenha sido física,da cidade mesmo. Percebo em Niterói as mudanças pontuais de sempre: na Rua Moreira César, uma nova cafeteria, novas lojas com vitrines modernizadas; no resto da cidade, o trânsito ainda mais congestionado, o "mergulhão" da Av. Jansen de Melo quase pronto. Uma cidade que cresce e que para o alienígena que volta (eu) ganhou um inusitado apelo turístico, que eu não percebia quando morávamos aqui (quando digo aqui, refiro-me a Niterói, já que estou aqui hoje, para um aniversário em família).
        O retorno às cidades em que passamos a infância é sempre surpreendente. As ruas não têm nada daquela largueza da infância, as pracinhas são minúsculas, a cidade de nossa memória não é mais a mesma. Quando retornei a São Fidélis (RJ), já adulta, após 30 anos de ausência, estranhei. A casa de meus pais era o próprio...quartel do Tiro de Guerra (como eram conhecidos os centros de instrução militar do Exército dos municípios, nas décadas de 40 e 50). Como sargento instrutor, meu pai era constantemente transferido de cidade em cidade, ou de estado em estado. Guardei na memória os jovens recrutas de uniforme verde-oliva, sentados respeitosamente em carteiras do tipo escolar antigo, no grande salão onde era feita a instrução diária. Nosso quarto, meu e de meu irmão R., ficava exatamente de frente para essa sala coletiva. A figura empinada de uniforme militar que aparecia de costas, diante de nossa visão estremunhada, todas as manhãs, era meu pai. Ninguém se movia nas carteiras, saíamos do quarto, envergonhados diante daquela ue para nós era uma multidão.
      Entre os nove e os 12 anos, eu era uma menina extremamente magra e desengonçada, muito tímida (também, pudera!),  que recebia igualmente calada cascudos maternos e correiadas paternas por ser demasiadamente preguiçosa. Na verdade, o que eu gostava mesmo era de ler os volumes cuidadosamente alinhados nas estantes de meu pai, exatamente à direita de quem saía do quarto. Eu escolhia lá para ler os alentados volumes da História Universal, de Césare Cantu, as Memórias de um Médico  e O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas (o primeiro em 20 pequenos volumes de capa colorida, precursores dos atuais livros de bolso) e o Inferno e o Purgatório, de Dante, tudo isso com 11 anos de idade! Não, eu não era um gênio, simplesmente não tinha amigos e a única coisa à mão para passar o tempo, na era anterior à TV, era ler. E o que havia à mão para ler eram os livros de meu pai (infelizmente, não li o Paraíso, que penso não ter feito parte da biblioteca paterna).
      Eu falava das cidades. Retornando a São Fidélis, tive essa espécie de choque cultural. A fachada do prédio que era ao mesmo tempo nossa casa e quartel era muito menor do que a da imagem de minha lembrança. As ruas, estreitas e curtas, a pracinha, com seu chafariz, seus bancos e a igreja do outro lado, tinham dimensões menores do que as que eu guardara, com a perspectiva visual de uma criança, na memória. Aquela não era a cidade que eu lembrava, mas uma espécie de Lilliput (a ilha criada pelo escritor Jonathan Swift em As viagens de Gulliver, onde casas e habitantes mediam-se por uma escala de centímetros), ou uma Madurodam (miniatura de cidade em Scheveningen, Haia, na Holanda), precariamente construída à beira-rio. A surpresa foi maior quando entrei no antigo Quartel. O imenso salão de instrução não passava de uma ridícula saleta, onde caberia apenas a metade dos recrutas que eu imaginava.
     E quando cheguei ao quintal?  Imenso, com pés de mamona, mamoeiros, uma pitangueira e uma amoreira, era agora um melancólico quadrado de uns cinco metros de lado, no qual o olhar, impedido de ir adiante, subitamente esbarrava num muro que, não era possível, só podia ter sido construído ali muitos anos depois de minha saída. Mas não, soube que o quintal era aquele mesmo e o muro, o mesmo de 30 anos atrás. O que havia mudado era, na verdade, minha percepção de seu tamanho. Muita gente, ao que sei, já observou essa curiosa refração da realidade, como se a víssemos através de um prisma que a tornasse apenas uma imagem refletida do que outrora foi.

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