Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Peixe do rio

      Palmilhamos cada centímetro de pedras do Centro Histórico. Entrei em cada porta de loja, cada abertura de galeria, cada portinha de café. Degustamos cocadas, pés-de-moleque, quindins e quebra-queixos de cada carrinho de doces da rua, de manhã à noite. Comprei belos chapéus: um bege para o inverno, outro de palha rosa-choque para o verão, um branco de abas largas e laço preto para as tardes de sol morno, uma canga verde para enrolar no pescoço, uma pashmina roxa. Estava feliz no colorido claro das ruas, entre franceses, argentinos, italianos, paulistas, mineiros! Parecia tão cosmopolita! Saíamos todos os dias para bater pernas pelo centro. E logo, logo, descobrimos as sessões de cinema das terças-feiras na Casa da Cultura e das quartas-feiras na sede do IPHAN, ao lado da Praça da Matriz. A Praça da Matriz! Sentar num banco olhando para o nada, ou tomar uma caipirinha numa mesinha no meio da rua, em cima das pedras, ou um bom vinho em um bom restaurante, num ambiente elegante, levar Gui e Jô, R. e Andréa, mostrar a nossa cidade, tomar uma caipirinha, uma cachaça Maria Isabel uma vez ou outra!
      A cada 15 dias, mas às vezes até uma vez por semana, íamos a Niterói, resolver probleminhas dos tempos passados. Só que agora lembrei-me de um episódio ridículo-cômico, entrevisto certa tarde em que atravessávamos a Ponte Amarela (ou Ponte Nova, como a conhecem aqui). Um formigueiro de gente do lado oposto, olhando para o rio, logo abaixo. A ambulância vermelho-fogo do Corpo de Bombeiros aparecia logo, estacionada na rua. E, no barranco enlameado, em meio à vegetação rasteira, um sujeito grandalhão, evidentemente gringo, roupas encharcadas, bracejava e esperneava, escorregando feito um peixe maluco entre os braços de dois ou três bombeiros-enfermeiros. Não queria ser salvo das águas barrentas de jeito nenhum! A enrascada em que se metera: sua moto, não conseguindo fazer a curva em direção à ponte, seguira em linha reta barranco abaixo e mergulhara no rio.
      Foi um custo dominar a criatura, mas os bombeiros venceram pelo cansaço. Estirado no chão, arfava como um peixe recém-pescado, olhos esgazeados, tentando entender. Botaram ele de pé. Frente a frente, eles se analisaram mutuamente. O chefe dos bombeiros, cansado:
      - Colabora...! pediu.
      Escorrendo água, o gringo cruzou os braços dignamente sobre o peito, olhou nos olhos de seu salvador e mandou:
      - Adonde voy? com uma voz tonitruante que podia ser ouvida até do outro lado da ponte.
      - Pro hospital! respondeu o chefe dos bombeiros.
      Foi só aí que o gringo baixou a guarda e entrou na ambulância, sob os aplausos e risadas da multidão.
      Um dia, descendo do ônibus da Costa Verde, na estrada junto ao condomínio, eu me embaralhei. Arrastando a mala, atravessei  a estrada para ganhar o condomínio, mas, em vez disso, sentei no meio-fio, onde fiquei sob os olhos de A., até que uma ambulância do SAMU veio me buscar. Foi assim que pela primeira vez conheci o hospital da cidade, uma construção simples, com gente atenciosa, que me botou de pé em meia hora. Foi só então que decidi maneirar um pouco as caminhadas loucas e diárias pelas pedras, debaixo de sol intenso, o excesso de doces e cafés... Não senti mais nada, lá se vão uns oito ou nove meses. É que estava vivendo como uma turista deslumbrada dentro de minha própria cidade. Porque Paraty já é a minha cidade, aquela onde pareço ter vivido sempre. Que escolhi para viver, antes tarde do que nunca. Indigestão de liberdade dá nisso.
  
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Um comentário:

  1. ´Conheço o lugar. Os gringos alugam motos ou bikes, se embebedam e constumam cair no rio antes de chegarem na ponte. " Faz Parte"

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