Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Negrume

      Tropecei no primeiro degrau da escada, que avança sala a dentro, súbito negrume diante dos olhos, como cega. Subi degrau por degrau, segurando as paredes. Na metade da subida, fiz a curva à esquerda, cuidando para não pisar no estreitamento do degrau,  preferindo a parte alargada pela curva, debaixo do meu pé direito. O corrimão! Peguei-o com força com a mão esquerda, agora mais segura. Rastejei o pé quando achei que seria o último degrau, para confirmar. O pé seguiu pela planície, sem mais obstáculos. O quarto à esquerda era o objetivo, mas aquela porta era absolutamente estranha. Não admira: era a do banheiro, pronto, me perdi! O negrume dos que não têm visão, ponta dos dedos nas paredes, quem sabe eu acho? Era um mundo de paredes! Os dedos tatearam de súbito um batente, uma abertura, e as canelas descobriram, um passo à frente, uma pancada na quina da cama. Agora é só virar para a esquerda, rastrear o colchão, sentar, tatear o criado-mudo e abrir a primeira gaveta. Ali estava a lanterna. Tateei de novo escada abaixo, o corrimão seguro como a mão de alguém paciente e prestativo. Na base táctil dos pés, o alargamento agora é à esquerda e a curva à direita, onde os degraus se estreitam. Um tombo no escuro me derrubaria no chão da sala, aos borbotões. Tateei até a cozinha, lanterna na mão, em busca de fósforos. A questão agora era acender um fósforo para poder inspecionar a lanterna, muda, ceguinha como eu. Pilha fraca, velha!
      Na escuridão, A. tateia dentro do banheiro: acabara de tomar banho, quando a energia faltou. No elogiado chalé de belas traves de madeira no teto, faltam água e luz ao mesmo tempo. Vestir as roupas de dormir, deitar na cama e esperar o dia amanhecer é a única solução possível. Sem água, sem luz, sem banho, fomos pegos de surpresa, sem uma única vela em casa e com as duas lanternas com pilhas gastas. Senti-me no século XIX! Paraty tem dessas coisas. Após um ano e cinco meses aqui, já estou maravilhosamente adaptada e não serei eu, uma adventícia, que vou protestar. A situação continuou desse jeito esquizofrênico por cinco dias. Na Cedae, disseram-nos que providências já estavam sendo tomadas. Tomando café feito com água mineral e almoçando fora, pratos, panelas e roupas por lavar, enquanto temporais caem com estrondo no quintal... invejei o maravilhoso despercício da Natureza. Botei uma panela na chuva livre, longe dos beirais (para não pegar goteiras) e ganhei uma boa porção de água deliciosamente limpa, com a qual cozinhei umas bananas-da-terra, ontem à noite... já ajudou um bocado. Alguém aí já cozinhou com água "orgânica"? Pois é. 

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