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"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Pequenas cidades

      Quando criei este blog, tinha a intenção de falar sobre um micro-choque cultural: a mudança de um casal de terceira idade, vida estabelecida na cidade grande, para pequena cidade do litoral. Claro que quando nos mudamos para cá, não pensávamos em nada disso. Um ano e meio depois, já posso fazer uma avaliação de nossa estada aqui e constatar que houve uma aculturação (aliás, necessária). Para começar, reencontramos usos e valores que já não estávamos acostumados a ver na cidade grande. As pessoas aqui têm uma doçura de trato há muito perdida pelos habitantes das grandes metrópoles. Falo dos verdadeiros nativos, ou dos que moram aqui há tanto tempo que já se consideram paratienses por adoção. Nas grandes cidades, por uma questão de sobrevivência, somos obrigados a adquirir uma postura defensiva e às vezes até agressiva nas relações interpessoais. Desconfia-se de tudo e de todos, mal cumprimentamos nosso vizinho, agimos ou reagimos com agressividade no trânsito, agarramo-nos à bolsa ou ao bolso, com medo de um assalto. Nossa solidariedade só aparece em situações-limite, como, por exemplo, um acidente ou tragédia, como a ocorrida em Santa Maria, RS.
      Eu já tinha mencionado a honestidade intrínseca dos habitantes daqui. Falo, pois, da doçura de trato. O produto que lhe venderam não funciona? Trocaram sua caneca de vinho por uma xícara de café? O serviço contratado chega dois dias depois, sem desculpas pelo atraso, sem aviso de que afinal vai chegar e ainda perguntam, docemente, por que você não estava em casa? Não reclame: você terá em troca um olhar doce, um sorriso tímido, um tom de voz baixinho que vai desarmá-lo. Os balaústres dos ônibus estão soltos e quem se segurar neles vai ser lançado adiante, na próxima freada? A campainha para dar sinal de parada não funciona? "Fazer o quê, né?". Não se reclama, aqui se aceita, simplesmente, a vida como ela é. Não se consegue discutir com um paratiense, mesmo sendo você o mais marrento dos seres. O que seria impensável na cidade grande aqui é muito bom! Exercer nossos direitos de repente parece cansativo... aqui ninguém é obrigado a exigir nada, adeus ao excesso de conscientização! Pois é, eu, a reclamona número um, estou gostando disso.
      Minha vida, até os treze anos, foi vivida em pequenas cidades do interior - do RJ, do Espírito Santo, de Minas Gerais - devido às constantes viagens a que a família tinha de se submeter, por força da profissão do pai - sargento do Exército! Daqueles que antigamente dirigiam os chamados Tiros de Guerra - quartéis onde eram recebidos os recrutas, nas décadas de 40, 50, que sei eu! Vejo-me em uma minúscula cidade, que não reconheço mais, andando por um chão coberto de matos e folhas e metendo os pés descalços nas águas frias de um riacho pedregoso... ou deitada debaixo de uma árvore, observando as moedas de luz do sol que perfuravam a copa fechada de uma pitangueira, jogando à sua frente uma fresta de pó dançante... catando mangas caídas e ainda intactas de mangueiras adultas e indo vendê-las na calçada em frente de casa, dentro do caminhãozinho de brinquedo do irmão...  ou descobrindo moedas do século dezoito junto a uma cerca velha, semienterradas no solo...
      Pois é, aqui estou, de volta às origens, em uma pequena cidade do litoral que faz as vezes, em todos os sentidos, daquelas pequenas cidades do interior.    
 

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