Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Figura

      - Oooo... láaaa!!!
      Era assim que o gaúcho aparecia lá em casa. O portão de entrada era aberto sem cerimônia e as janelas da sala escancaradas com um só gesto de ambas as mãos. Seu rosto sorridente aparecia enquadrado, materializando-se de repente, trazendo para dentro da casa um gesto de susto e o medo de que, estivesse ele na porta da sala, levaria pelo ar, como um redemoinho, tudo o que estivesse lá dentro. As risadas e os gestos largos, porém, mostravam que devia ser gente boa e que não estava a fim de assustar ninguém. Era um camarada alto e encorpado, de seus 40 anos, morador do chalé que ficava a dois de distância do nosso, já há algumas semanas antes de nossa chegada. Por sinal, sua casa estava sempre fechada e seu morador, ausente. Os cumprimentos recíprocos, porém, vinham de apenas alguns dias.
      Isso não o impediu de nos fazer um pedido pouco comum. Quem viaja por alguns dias costuma deixar as luzes externas da casa acesas, numa tentativa de inibir ataques de possíveis ladrões (o que, segundo especialistas em segurança, tem muitas vezes efeito contrário: vendo as luzes da casa permanentemente acesas, os ladrões percebem que não há ninguém em casa). Ele simplesmente queria que nós fôssemos diariamente, de manhã e à noite, apagar e acender as luzes de sua casa, enquanto estivesse fora. A sua faxineira, que informalmente ficara encarregada das luzes (coitada, devia vir a pé das bandas do Corumbê ou da Várzea duas vezes por dia, só para isso), tirara o corpo fora e uma vizinha nossa, que a substituíra, desistira, sob um pretexto qualquer (aqui entre nós, não admira).    
      A. começou a dizer que não, não podíamos, mas eu o interrompi a tempo. Não custava nada fazer um pequeno favor a um vizinho! O gaúcho prometeu trazer-me "um presentinho" de Porto Alegre e trouxe, realmente, quando voltou, uma garrafa de um vinho chileno muito correto. Não pude, porém, deixar de pensar por que cargas d'água alguém traria de presente do Rio Grande do Sul uma garrafa de vinho chileno. Outra estranheza jamais desvendada é que as garrafas seguintes (fosse ele para o Rio, Porto Alegre ou Itália), não fizeram jus à primeira. Eram todas de marca bem popular (eu preferia não dizer imbebíveis, mas já disse), uma delas o Santa Colina, comum nas prateleiras de mercados, bares e padarias de Paraty e que nunca vi em nenhum outro lugar. Que seus produtores não me ouçam!
      Quando da da história das luzes, fomos à casa dele, para que nos mostrasse onde ficavam os interruptores da corrente elétrica. Para isso, não precisamos dar mais que dois passos dentro da sala. Como ele dizia trabalhar com antiguidades, foi mais do que natural observar que, apesar de limpa e bem arrumada, a sala parecia mais uma espécie de depósito de móveis e objetos de aparência envelhecida do que uma sala comum.
      - É só abrir a porta que o interruptor fica logo na entrada. Vocês acendem a luz à noite e apagam de manhã.Tenho muita coisa em casa, vocês estão vendo, e tenho medo de ladrões! Espero não estar incomodando! gesticulou, dando largas risadas.
      Depois de alguns meses de viagens e respectivo apagar e acender de luzes, o gaúcho avisou, finalmente, que ia desocupar a casa para morar na Barra da Tijuca. A., em particular, se irritava a cada vez que ele pedia para acendermos as luzes, mas nada dizia, por minha causa. Eu mesma já não estava gostando muito daquela responsabilidade. E se ele cismasse que alguma coisa em casa sumira! Mas isso durou alguns poucos meses. Certo dia, materializou-se na porta da sala, todo gestos e risadas, para me entregar um pacotinho de chocolates Bis como lembrança de despedida e avisar que estava de mudança para a Barra da Tijuca. Nunca mais o vimos.
      Se conto essa história é porque essa figura inusitada, cujo nome verdadeiro prefiro não revelar, foi uma das primeiras pessoas que conhecemos em Paraty. E também porque eu estava sem assunto para este post!

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