Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Boneca

      Quase um mês após nossa mudança, a casa continua um caos. Meu senso de desorganização é grande. Acredito que seja uma característica de minha personalidade, como já detectara meu pai, certa vez, em Niterói. Eu já estava na casa dos vinte e morávamos em São Francisco. Da porta de meu quarto, vendo a confusão lá dentro, disse: - Bagunça do lado de fora é sinal de bagunça do lado de dentro, sentenciou, dando meia-volta para o corredor, ao estilo militar. Ele tinha razão. Esta mudança como que bagunçou minha escrita mental e me arrasta velozmente ao passado. Surgem cenas que não têm a ver com mudança e sim com presença, continuidade, como a do dia em que ganhei uma boneca de louça. A propósito, naquela época, em São Fidélis pelo menos, as meninas dessa idade ainda brincavam de boneca.
     Era o dia do meu aniversário de 9 anos e minha mãe levou-me a uma loja no centro da pequena cidade que era a São Fidélis de então. Ia comprar-me um presente, uma boneca, anunciou. Na loja, havia umas prateleiras toscas com algumas poucas bonecas. Minha mãe apontou uma, de porcelana rosada, cabelos louros, olhos azuis e pernas grossas de bebê. Só que... suas pernas estavam cobertas por uma delicada rede de finas rachaduras, um craquelado irregular que a enfeiava, dando-lhe uma aparência de boneca usada, esquecida em um brechó empoeirado. Dificilmente uma criança a escolheria, a não ser que surgisse na loja uma freguesa como mamãe.
       Eu não a queria. Não com aquelas pernas feias.
      - As pernas dela estão rachadas, eu apontei, timidamente, por sobre o balcão.
      - Não faz mal, boba, eu faço umas meias de crochê para ela e isso não vai nem aparecer, decretou  mamãe.
      Vi logo que não adiantava reclamar, calei a boca e levei a boneca para casa, enrolada em papel de embrulho, porque naquela época não se usavam sacolas plásticas. Imagino hoje que, se eu tivesse uma filha, jamais lhe daria, como presente, uma boneca com defeito. Muito menos a levaria a uma loja  (o que pressupõe liberdade de escolha) para isso. Devo dizer que minha mãe cumpriu o que prometera, crochetando em linha branca um par de meias grossas, que apenas disfarçavam o defeito, mas não o encobriam totalmente. Além do mais, não podiam ser tiradas nunca, ou o defeito ficaria mais visível. Era evidentemente um disfarce - bem feito, mas ainda assim, um  disfarce.
       E há também a história do anel de pedra verde. Numa viagem de trem, alguns anos antes, eu olhava distraída a paisagem, quando ela me chamou a atenção:
      - Sua boba, vira o anel para cima, para todo mundo ver!
       E ainda outra história. Aos 13 anos, já morando em São Gonçalo (onde fiquei até os 17), dei-lhe de presente no Dia das Mães uma imagem de santa, uma Nossa Senhora de 15 centímetros, de manto azul e mãos estendidas em bênção, comprada com dinheiro dado por meu pai. Ela não agradeceu, mas, horas depois, parou diante de mim e disparou:
      - Não me dá mais esse tipo de presente, não, tá? O que vou fazer com isso? Eu não estou montando nenhum santuário!
      Essa era minha mãe. Simples, direta e prática até a raiz do cabelo. Sem nenhuma sensibilidade também.
      A esse tipo de reflexão leva uma mudança de casa. Esta é minha primeira mudança para uma casa própria,  porque sempre morei em casas alugadas. E, ironicamente, se agora estou em Paraty, é graças à  venda do apartamento da família, em Niterói. Os dois anos que morei no pequeno chalé, do outro lado da rua, serviram, na verdade, como adaptação. O mais curioso é que, durante um ano inteiro, o que eu via era aquele portão de ferro sempre fechado, aquele muro alto à beira da rodovia, sem suspeitar que atrás deles existia um condomínio organizado.

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