Tradução

"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Milagres

      A casa se encarapitava em uma encosta e tinha uma escada que para nós, crianças, era imensa. No entanto, tenho certeza de que não passava de uma escada comum, com seus seis ou sete degraus. Da casa, descíamos para a estrada de terra batida e, do lado oposto desta, para o preguiçoso e barrento rio Doce.     Eu teria seis ou sete anos quando meu irmão R., que tinha três ou quatro, despencou degraus abaixo. Numa cena muda (não ouço sons, há apenas gestos), vejo-me aparando-o com a vassoura que tinha à mão e com a qual varria o terreno. De Colatina, lembro-me do papagaio Louro, que eu encarapitava no dedo para vê-lo numa espécie de dança, jogando as perninhas para um lado e para o outro. Era o xodó de vó Alzira, mas uma tarde, sumiu do poleiro. Foram horas de procura, até que, já noite, meu pai foi encontrá-lo entre as árvores do barranco, à beira-rio. Certamente felicíssimo por essas poucas horas de liberdade.
      Um verdadeiro milagre de Santo Antônio, segundo minha mãe. O mesmo santo que, anos depois, voltou a ajudar meu pai, quando a chave de nossa casa sumiu  nas areias grossas e amarelas da praia de Marataíses, numa temporada de férias. Ele saía em campo, enquanto vovó Alzira chorava e mamãe rezava sem cessar. Cachoeiro do Itapemirim (ES) também tinha beira-rio. Não sei se por escolha ou por acaso, nossas casas geralmente ficavam à beira de rios. Em Colatina a estrada acompanhava seu fluxo, em Pádua nosso grande quintal dava diretamente para o rio, sombreado por bambuzais, mangueiras e cafeeiros. Na verdade, pareciam dois quintais, porque uma cerca dividia o terreno em seu terço. Do outro lado da cerca, que ultrapassávamos por um buraco ou um portão, havia cafeeiros pintalgados ora de branco, ora de rubro, segundo sua floração ou as bagas vermelhas e brilhosas do café maduro.
      Tínhamos pernas para brincar de esconde-esconde entre as jabuticabeiras, que escalávamos sem pensar, derrubando sem dó as frutinhas pretas que cobriam generosamente os troncos lisos, tamanha era a fartura. Dedos ávidos retiravam as bolinhas pretas do tronco e dos galhos para estourá-las com delícia entre os dentes, num  espalhar de doçura. Os caroços eram engolidos todos, apesar das advertências dos adultos, que nos diziam que iríamos ficar entupidos. E, um dia, dei uma pedrada na testa de meu irmão, que guardou a marca até a idade adulta. De outra vez, encontrei a empregada da casa caída no chão, desmaiada. E, de outra, encontrei moedas dos séculos XVIII e XIX enterradas ao pé da cerca de bambus. Em Cachoeiro, apaixonei-me, aos nove anos, por um menino de onze, chamado Carlos César que, numa cena dramática, na véspera de nossa mudança para São Fidélis, atirou-me, do alto de uma árvore, um fruto de ingazeira no rosto. Mas isso é uma outra história.

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