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"O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" (Isabel Allende, em Paula)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Balanço

           Ao longo destes dois anos e meio em Paraty, cometemos alguns (tremendos) equívocos de principiante. Talvez eu tenha idealizado a cidade: basta ver alguns posts do início deste blog. Elogiei várias vezes o quão seus moradores são honestos, afáveis e prestativos. Acreditava fazer amigos rápido por aqui. Neste balanço de início de ano, verifico que nem tudo foi como eu idealizava. Ao lado da extrema honestidade do povo local, tivemos o desgosto de ver que alguém penetrou em nossa casa, abrindo a porta de alguma forma, enquanto viajávamos (ver post do dia 18 de janeiro passado). A falta de compromisso com a palavra dada: faxineiras que não aparecem no dia marcado, marceneiros que prometem aparecer e não o fazem, prestadores de serviços vários que somem sem deixar vestígios, deixou de ser engraçadinha para tornar-se incômoda. Percebo também, no dia-a-dia, que os homens daqui são bem machistas. Comportamentos comuns na cidade grande para uma mulher (tomar táxi sozinha, circular pelas ruas do centro fazendo compras), aqui são vistos com reservas.
      A afabilidade aparente também pode se transformar em rejeição. Um amigo nosso, morador de Paraty há alguns anos, foi convidado a participar de uma reunião de uma comissão formada para discutir assuntos de interesse da comunidade. Quando ele se levantou para dar sua opinião sobre o assunto em pauta, começou um bate-boca cheio de animosidade, ao final do qual alegaram que, como não era natural da terra, não tinha direito de emitir opinião. O choque cultural existe. De uma maneira geral, os nativos falam baixo e modos gentis. Quem vem da cidade grande, especialmente do Rio, por mais educado que seja, sempre falará mais alto e com mais ênfase que o paratiense. Não dá para imitar aquele olhar de uma placidez profunda, aquela fala baixinha, o meio-sorriso, as respostas tranquilas... e isso mesmo que você traga seus bons modos de berço, ou tenha tido aulas de etiqueta.
      Poucos meses após nossa chegada, fomos a uma vernissage na Casa da Cultura. À espera dos salgadinhos, surgiu perto de nós uma jovem senhora baixinha, de aspecto meio alternativo (saião estampado, cabelos ouriçados presos em rabo-de-cavalo, olha o preconceito). Ela fez um comentário qualquer sobre o evento, em voz educada. Eu, toda feliz ´por estar ali, participando de um evento na minha cidade, conhecendo pessoas, respondi ao comentário em voz inadvertidamente alta. Ela silenciou repentinamente. Dias depois, caminhando pela beira-rio, passa por nós a referida senhora que, ao nos ver, em vez de um cumprimento educado, adotou um comportamento inusitado: baixou a cabeça, inclinando-a para o lado direito, fazendo ao mesmo tempo uma careta de desdém. Nas dezenas de vezes em que cruzamos com ela na rua, repetia os mesmos gestos: cabeça abaixada, torcida para o lado, careta de desdém. Definitivamente, eu a havia assustado.
     Após uns dois meses, não a vimos mais. Resolvi perguntar por ela num restaurante do centro da cidade, onde às vezes eu a via almoçando, sempre sozinha. Quem sabe teriam alguma notícia? Pois é, disseram, ela havia se mudado para Ubatuba. A. costuma dizer que falei tão alto que espantei a moça da cidade. Aprendi, um pouco tarde, que, por estar fora de seu meio ambiente (a cidade grande) não se pode relaxar com os bons modos. Do contrário, você se arrisca a ser malvisto (aliás, na cidade grande também!). 
      É prática comum em Paraty errar (sempre para mais), na conta dos restaurantes. Aconteceu conosco, várias vezes. Quando dizemos que somos moradores daqui e não turistas, pedem desculpas. Concluo que Paraty não é o paraíso (sempre que vejo as latas de lixo imundas e quebradas no centro da  cidade, lembro-me disso). É uma cidade como outra qualquer, um pouco esquizofrênica porque dividida -  de um lado, a herança indígena, a caiçara, a quilombola; de outro, o cosmopolitismo do turismo internacional e, recheando esse sanduíche de culturas, o povo comum, que não é nem indígena, nem caiçara, nem quilombola, nem também estrangeiro, mas simplesmente a gente das ruas, a maioria da população local.
      Imersa nesse cadinho de culturas, um pouco a imagem do Brasil, sentada em uma lan house, ouço música eletrônica vinda de um vídeo na TV. Meninos guaranis, no centro histórico, cantam canções em sua língua, marcando o ritmo com um chocalho, para ganhar moedas, que os turistas depositam em um boné surrado. Uma turista passa e comenta com um amigo, em inglês: "This is a really magic place, isn't it?" Sim, com suas calçadas que mais parecem uma trilha de obstáculos, suas latas de lixo quebradas e imundas, a ponte inacabada e dada como pronta pela construtora (!), as pedras do calçamento histórico cobertas por areia e terra, o descaso com a aparência das ruas, os erros nas contas do restaurante, a visão atrasada do homem comum em relação à mulher, isto aqui ainda é um mágico lugar. Ainda te amo, Paraty.

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